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O encadeamento da conversa começa a alterar-se com demasiada rapidez. Não sei porque disse que me sentia tarado, eu sou! Tarado correcto, pacientemente tarado, o taradão que espera pela sua vez. Observo umas ancas por dentro de umas calças brancas de bombazina. O tarado que escreve, esperando por um orgasmo no final de cada página. Sei lá, estou por quase tudo. Vou mascar uma pastilha como se fosse um adolescente malcriado. Faço barulho ao mascar, mostro os dentes, as senhoras calaram-se. Oh, dei nas vistas, olha que bom! Apetecia-me perguntar-lhes se era aqui que dão as doses de metadona mas já me basta a fama por esta terra. Como é bom ter fama e algum proveito
Eis a maldita porta verde que se abre, entra o número sete. Ora bem, sendo agora 11h20m, numa hora foram atendidos sete pessoas, espero que daqui a outra seja eu. Sala de espera, lista de espera, marcação para o dia, marcação no dia que já tinha sido marcado num outro dia. Espero pela minha vez com papéis para mostrar. Selos, carimbos, recibos de computador, 2 euros de taxa e o chão de vinil irritantemente vermelho.
Em que número vai? Já nem sei
sinto-me aborrecido, apetece-me libertar um Foda-se!. Não o faço porque não quero associar a minha fama à ordinarice. Só o sou uma vez por outra, bem longe
pois, está bem.
Não tenho mais nenhuma cadeira livre, os professores já me estão a irritar. Será que não podem falar de outra merda qualquer? Será que os tipos da recolha do lixo só falam de contentores e nas madrugadas que levam agarrados à traseira de um Mercedes? Não posso! Não quero! Não me apetece!
Um rapazito vestido de homem aranha surge do nada. Olha que giro! A mim obrigaram-me a ir vestido de... João Ratão, aquele do caldeirão e tal, como eu detestei esse dia! Lembro-me de um cromo vestido de palhaço que ia atrás de mim, não fez mais que levar o tempo inteiro a puxar-me a cauda. Lembro-me tão bem dessa manhã horrorosa. Vestido a rigor, de cartola na cabeça com um elástico que me assou as orelhas. Calças cinzentas e com casaco de aba de grilo. Bigode e cauda de roedor, com cara de enterro no dia do casamento, um fofo! Ao meu lado, obrigado a dar o braço à carochinha. E lá fui pelas ruas da vila, à cabeça do pelotão da malta da creche, uma sentença! Personificando um fulano de uma história que acaba em tragédia.
Entra o número nove, eu sou o doze, está quase, está quase! Fiz uma pausa de alguns minutos, tirei umas fotos dos locais que mais me irritam. Quando as pessoas se calam, o barulho das lâmpadas invade-me. Ai! Número dez! São os professores, que bom! Falta pouco para mim e o melhor é que deixei de os ouvir. Restamos apenas cinco aqui na sala de espera. Falam alto, eu continuo calado. Corte e costura, mordaz, a ferro quente. Suspiro, olho pela janela, cerro levemente os olhos devido à luz exterior. Não entendo porque a janela tem este formato. Talvez da mesma forma que o responsável pela sua concepção não me entende, será?
Ainda não me passou a vontade de dizer Foda-se!, mas está mais calma. Falta pouco para a minha vez. Os ponteiros roçam já as 12 no relógio. Eu bem disse como iria ser, eu bem disse! Ao tirar o caderno para escrever um pouco, perguntei-me como iria preencher esta morte lenta. Pensei eu que nem chegaria a metade. Ora bolas, aí enganei-me. Isto está-me a saber tão bem! Ainda por cima a folha está quase no fim, mais um orgasmo ao virar da página. Hoje acordei particularmente tarado, apetece-me! Tenho fome, sede e nem digo mais nada!
Acabo de saber que uma das senhoras comprou um colchão novo, tem uma filha de 26 anos. A outra senhora fala da sua temperatura, de manhã tem 36,5º , ao almoço 37,25º (esta achei curiosa!) e à noite 38,5º. Calaram-se, ouvem a outra que se queixa da vida. Martelam na mesma bigorna a vida inteira, voltam, revolvem, repetem a mesma história do marido, a filha, a neta. E volta a contar de inicio para que toda a gente saiba. Estão entretidas entre as quatro. O número dez teima em não sair. Oh não! Os professores! Assassinam-me o resto do tempo! Deixem um pouco para mim por favor! Será que isto tem serviço de confessionário social e eu não sabia? Será que fiquei parvo de todo? Será que não há retorno? Porque raios escolheram o chão desta cor? Porque não páro com as perguntas? Porquê isto e não aquilo? Tenho fome, continuo tarado e com vontade de dizer Foda-se!. Gosto de ver a palavra escrita
foda-se! Foda-se! Foda-se!
Agora neste silêncio típico de velório nas horas da madrugada, as quatro senhoras observam-me. Nem uma enfermeira novata que passa, pouco mais tenho para dizer
ou então minto. Começa a hora de aparecerem os não consulta, os oportunistas que não se dão ao trabalho. Não passo a minha vez a ninguém, que se fodam! Esperem sentados, peguem numa caneta, roam-na, façam rabiscos, tirem cerume dos ouvidos, qualquer coisa! Não me interessa, não me importa e nem quero que se importem.
Masco a pastilha vagarosamente, segundo a segundo. Merda! Já lá estão há mais de 15 minutos, não chega já? Umas aspirinas e ficam porreiros, reforma antecipada, um lugar bem remunerado no Ministério
vá! Só quero que chegue a minha vez. Agora tinha que emperrar no dez? Faço uma pausa. Resultou! Após 30 minutos dentro do gabinete. Pronto, 15 minutos para cada um. Pergunto-me quando chegará o dia em que estarei lá mais de 15 minutos.
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E para variar, estou a ser observado por alguém. É mulher, sou o único do sexo oposto aqui. Murmura qualquer coisa. Porquê? Não me preocupo com a resposta. Apeteceu-me simplesmente perguntar porquê. Olhei para ela, fintei-a nos olhos, apanhei-a a olhar para mim, morde o lábio. Desvio o olhar, continuo a escrever esboçando um leve sorriso. Sou o número doze e falta pouco para deixar de ser número. Espero ansioso por aquela voz do fundo do gabinete Número doze!. Entrar, fechar a porta, cumprimentar e ouvir Então menino Marco, como está?.
Finto-a novamente, apanho-a a olhar para mim mais uma vez. Sei que quando entrar por aquela porta, as quatro senhoras irão comentar. Número doze, di-lo caramba! Quero ouvir! Di-lo! O número onze sai do gabinete, procura por uma enfermeira para qualquer coisa, volta a entrar.. vou guardar o caderno para não ser apanhado desprevenido. Que se lixe, não paro até ouvir Número dozeeeee!. Estou a ficar obcecado com isto. Não me preocupo muito, mais cedo ou mais tarde sei que deixarei este momento. Isto é bom saber que é finito, custoso mas finito.
Não tenho boleia para casa, irei fumando um cigarro pelas ruas. É o habitual, caminhando ao sol, rumo a casa. Ai, a número onze volta a sair e volta para dentro
só pode estar a gozar comigo!
Deixo de ouvir ruídos, já são 12h40m, os funcionários já abandonaram o barco. Restam os maiores de doze, é uma questão de esperar só mais um pouquinho. Aguenta, não chora, diga Foda-se! para si, diga Foda-se! pelos outros. Mande-os foder mas não seja tarado. Masque pastilha de boquinha fechada. Não ligue se o observam, não ligue a nada mais. Enfim, limite-se à sua existência. Distancie-se mais um pouco. Seja abstracto e faça cara de parvitico. Tenha ainda mais fome, coma mais um pouco de si. Seja um número doze orgulhoso. Rebole no chão de vinil. Não queira saber do arquitecto, da propaganda médica do ano passado. Não ligue ao que segredam ali ao canto. Diga novamente Foda-se!. Esqueça as calças brancas de bombazina, de si, qualquer coisa!
(A porta abriu-se e larguei a escrita, demoro 8 minutos da minha vida no gabinete... a vida é bela!)
Marco Neves 10-02-06 Número Doze