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Urban Jungle

pensamentos, divagações e tangas da selva urbana

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Urban Jungle

16
Fev06

Número 12: Kill Bill (Megabife)

Cereza

Bem o texto está demais... mas não sei se entendem a minha interpretacção "gráfica"! Confesso, estou exausta! Lol! Puxei, puxei pela cabeça, e foi nisto que deu o texto do Marco. Divirtam-se!







Passa pouco das 10 da manhã. Encontro-me entre idosos, estropiados, suspiros, queixumes e pesares. O tempo arrasta-se como se fosse a caminho da cadeira eléctrica. Alguém pergunta “É aqui que se apanham as injecções?”, eu acho que aqui apanha-se uma dose industrial de tempo perdido. Observam-me e eu observo-os como se não fosse nada comigo.




São 10h12m, continua tudo na mesma. O número um entrou… sendo eu o doze… minha nossa, ainda tenho tanto tempo à frente. Mostrar análises, “Ai o menino tem de ter mais cuidado”, passa-me papéis novos, um trocar de olhar, tensão arterial aceitável, o menino mais qualquer coisa e quando sair por aquela porta já passará do meio dia certamente.

Faz-se silêncio, que morte! Alguém resolve falar, senhoras de idade trocam entre si experiências de doenças e maleitas. Tossem, falam de febre, adoecem no físico e na mente. Isto influencia involuntariamente o meu estado de espírito. Tenho os lábios colados de tão cerrados que estão.

A porta abre-se, aquela voz que já me é familliar, soando desde o fundo do gabinete cá para fora “Número dois!”. Bem, só faltam 10 pacientes… e pacientemente aqui fico, de perna cruzada, quase dormente. Não olho em meu redor, não me apetece.

Comichões, os comprimidos que se acabam, a vista que turvou há tempos, oiço pelo ar. Uma criança que brinca, estatela-se no chão mas não chora. Passos ao fundo, um “Bom dia..” comedido e envergonhado de quem chega. Enfermeiras novas, pinturas antigas nas paredes, feitas por crianças que hoje são adultos. Este irritante chão de vinil.. vermelho. Overdose de luz fria, o típico cheiro asséptico destes lugares. O pior… o pior mesmo é esta morte lenta. Tudo o que converge para este local. Sinto no ar toda uma força negativa. Isto faz mal a qualquer um!

Continuam as conversas das “malazengas”, o “ouvi dizer”, “diz que viu”, “diz que disse”. Epah, aquela enfermeira é simpática. Pois… continuo colado ao caderno, nada mais tenho para fazer. O número dois que continua lá dentro. Debitará todos os seus males? Tantos são, adicionados e empilhados ao longo dos anos. Talvez até o desgosto de ver o Simão a jogar que nem um nabo pago a peso de ouro.

O ambiente varia entre o silêncio de velório e um frenesim de escassos segundos, são ondas, variantes. Ai, como gosto daquela voz “Número três!”. Abre-se a porta da caverna e o número dois sai de alma liberta, como se estivesse livre de todos os seus pecados. Sai sorrindo, de passo leve lá vai… trálálá. Será que um dia sairei dali assim? Serei tão problemático com esta realidade que já nem me consigo abstrair desta teia de sentimentos? Poderei eu ser um pouco mais simples neste capitulo? Chegar ali ao gabinete e livrar-me de todos os meus males, “Oh Doutora, eu existo… e agora?”. Manda-me tirar umas radiografias, ser bombardeado com substâncias atómicas, daquelas que fazem bem à tosse. Tomar uns comprimidos placebo, tornar-me feliz da vida e assentar todo este pó que me serve de névoa mental.





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Desde há bocado que oiço estas duas personagens que se encontram ao meu lado esquerdo. Dois professores que se queixam do que sempre se queixaram. E os espanhóis isto, os ucranianos aquilo, sistema, dinheiro, docentes, planificação, discriminação, etc. Eu que detestava apanhar com recrutas porque a conversa era sempre a mesma, hoje constato que estes dois conseguem fazer pior. Bolas, não há mais nada vida para além disto? Todos temos mais qualquer coisa para dizer, está um belo dia!

A porta que se abre, “Número quatro!”, a caneta que por vezes falha, novamente sinto que estou na mira dos olhares, sinto! As enfermeiras do gabinete ao lado tiram a bata, desaparecem. Continuo a ser observado… um dos professores é mulher, saberá ela que não aprendi a tabuada? Estará estampado na minha cara que em tempos fiz frente à minha tutora da primária? Levei reguadas à barda, de nada serviu, apenas para fincar ainda mais a minha revolta em não acatar as ordens. Ainda hoje demonstro um orgulho estúpido e cego por não ter aprendido a tabuada e a razão inerente para o feito. Há caprichos de que não abdicarei mesmo, sorrio maliciosamente. Encosto a cabeça para trás, necessito de descansar por um momento. Sinto o sangue na cabeça, tudo continua na mesma.

A criança volta a cair no chão, os professores naquele problema existencial e limitativo. Eu por aqui também estou limitado. Novamente a ser observado, uma senhora de rosa e preto, baton vermelho garrido nos finos lábios. Estarei a fazer algo tão fora do comum? Saltam-me letras da cabeça e nunca dei por isso? Será fumo? Não me apetece ler revistas de propaganda médica. Não me apetece estar num local que já por si me deixa doente e enganar o tempo a ler algo sobre a lepra, não quero!

São 11h05m e ainda vai no número cinco. Entra o número seis, óptimo! Falta metade. As caras destas enfermeiras que chegam são-me familiares, dá-me a impressão que já andaram comigo ao colo. Ai! Tenho um acesso qualquer, sinto-me tarado, só mesmo a febre me tiraria a gana de qualquer-coisa-que-não-sei-explicar, a minha voz da consciência diz-me “Não te trates não…”.






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O encadeamento da conversa começa a alterar-se com demasiada rapidez. Não sei porque disse que me sentia tarado, eu sou! Tarado correcto, pacientemente tarado, o taradão que espera pela sua vez. Observo umas ancas por dentro de umas calças brancas de bombazina. O tarado que escreve, esperando por um orgasmo no final de cada página. Sei lá, estou por quase tudo. Vou mascar uma pastilha como se fosse um adolescente malcriado. Faço barulho ao mascar, mostro os dentes, as senhoras calaram-se. Oh, dei nas vistas, olha que bom! Apetecia-me perguntar-lhes se era aqui que dão as doses de metadona mas já me basta a fama por esta terra. Como é bom ter fama e algum proveito…

Eis a maldita porta verde que se abre, entra o número sete. Ora bem, sendo agora 11h20m, numa hora foram atendidos sete pessoas, espero que daqui a outra seja eu. Sala de espera, lista de espera, marcação para o dia, marcação no dia que já tinha sido marcado num outro dia. Espero pela minha vez com papéis para mostrar. Selos, carimbos, recibos de computador, 2 euros de taxa e o chão de vinil irritantemente vermelho.

Em que número vai? Já nem sei… sinto-me aborrecido, apetece-me libertar um “Foda-se!”. Não o faço porque não quero associar a minha fama à ordinarice. Só o sou uma vez por outra, bem longe… pois, está bem.

Não tenho mais nenhuma cadeira livre, os professores já me estão a irritar. Será que não podem falar de outra merda qualquer? Será que os tipos da recolha do lixo só falam de contentores e nas madrugadas que levam agarrados à traseira de um Mercedes? Não posso! Não quero! Não me apetece!

Um rapazito vestido de homem aranha surge do nada. Olha que giro! A mim obrigaram-me a ir vestido de... João Ratão, aquele do caldeirão e tal, como eu detestei esse dia! Lembro-me de um cromo vestido de palhaço que ia atrás de mim, não fez mais que levar o tempo inteiro a puxar-me a cauda. Lembro-me tão bem dessa manhã horrorosa. Vestido a rigor, de cartola na cabeça com um elástico que me assou as orelhas. Calças cinzentas e com casaco de aba de grilo. Bigode e cauda de roedor, com cara de enterro no dia do casamento, um fofo! Ao meu lado, obrigado a dar o braço à carochinha. E lá fui pelas ruas da vila, à cabeça do pelotão da malta da creche, uma sentença! Personificando um fulano de uma história que acaba em tragédia.

Entra o número nove, eu sou o doze, está quase, está quase! Fiz uma pausa de alguns minutos, tirei umas fotos dos locais que mais me irritam. Quando as pessoas se calam, o barulho das lâmpadas invade-me. Ai! Número dez! São os professores, que bom! Falta pouco para mim e o melhor é que deixei de os ouvir. Restamos apenas cinco aqui na sala de espera. Falam alto, eu continuo calado. Corte e costura, mordaz, a ferro quente. Suspiro, olho pela janela, cerro levemente os olhos devido à luz exterior. Não entendo porque a janela tem este formato. Talvez da mesma forma que o responsável pela sua concepção não me entende, será?

Ainda não me passou a vontade de dizer “Foda-se!”, mas está mais calma. Falta pouco para a minha vez. Os ponteiros roçam já as 12 no relógio. Eu bem disse como iria ser, eu bem disse! Ao tirar o caderno para escrever um pouco, perguntei-me como iria preencher esta morte lenta. Pensei eu que nem chegaria a metade. Ora bolas, aí enganei-me. Isto está-me a saber tão bem! Ainda por cima a folha está quase no fim, mais um orgasmo ao virar da página. Hoje acordei particularmente tarado, apetece-me! Tenho fome, sede e nem digo mais nada!

Acabo de saber que uma das senhoras comprou um colchão novo, tem uma filha de 26 anos. A outra senhora fala da sua temperatura, de manhã tem 36,5º , ao almoço 37,25º (esta achei curiosa!) e à noite 38,5º. Calaram-se, ouvem a outra que se queixa da vida. Martelam na mesma bigorna a vida inteira, voltam, revolvem, repetem a mesma história do marido, a filha, a neta. E volta a contar de inicio para que toda a gente saiba. Estão entretidas entre as quatro. O número dez teima em não sair. Oh não! Os professores! Assassinam-me o resto do tempo! Deixem um pouco para mim por favor! Será que isto tem serviço de confessionário social e eu não sabia? Será que fiquei parvo de todo? Será que não há retorno? Porque raios escolheram o chão desta cor? Porque não páro com as perguntas? Porquê isto e não aquilo? Tenho fome, continuo tarado e com vontade de dizer “Foda-se!”. Gosto de ver a palavra escrita… foda-se! Foda-se! Foda-se!

Agora neste silêncio típico de velório nas horas da madrugada, as quatro senhoras observam-me. Nem uma enfermeira novata que passa, pouco mais tenho para dizer… ou então minto. Começa a hora de aparecerem os “não consulta”, os oportunistas que não se dão ao trabalho. Não passo a minha vez a ninguém, que se fodam! Esperem sentados, peguem numa caneta, roam-na, façam rabiscos, tirem cerume dos ouvidos, qualquer coisa! Não me interessa, não me importa e nem quero que se importem.

Masco a pastilha vagarosamente, segundo a segundo. Merda! Já lá estão há mais de 15 minutos, não chega já? Umas aspirinas e ficam porreiros, reforma antecipada, um lugar bem remunerado no Ministério… vá! Só quero que chegue a minha vez. Agora tinha que emperrar no dez? Faço uma pausa. Resultou! Após 30 minutos dentro do gabinete. Pronto, 15 minutos para cada um. Pergunto-me quando chegará o dia em que estarei lá mais de 15 minutos.





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E para variar, estou a ser observado por alguém. É mulher, sou o único do sexo oposto aqui. Murmura qualquer coisa. Porquê? Não me preocupo com a resposta. Apeteceu-me simplesmente perguntar porquê. Olhei para ela, fintei-a nos olhos, apanhei-a a olhar para mim, morde o lábio. Desvio o olhar, continuo a escrever esboçando um leve sorriso. Sou o número doze e falta pouco para deixar de ser número. Espero ansioso por aquela voz do fundo do gabinete “Número doze!”. Entrar, fechar a porta, cumprimentar e ouvir “Então menino Marco, como está?”.

Finto-a novamente, apanho-a a olhar para mim mais uma vez. Sei que quando entrar por aquela porta, as quatro senhoras irão comentar. Número doze, di-lo caramba! Quero ouvir! Di-lo! O número onze sai do gabinete, procura por uma enfermeira para qualquer coisa, volta a entrar.. vou guardar o caderno para não ser apanhado desprevenido. Que se lixe, não paro até ouvir “Número dozeeeee!”. Estou a ficar obcecado com isto. Não me preocupo muito, mais cedo ou mais tarde sei que deixarei este momento. Isto é bom saber que é finito, custoso mas finito.

Não tenho boleia para casa, irei fumando um cigarro pelas ruas. É o habitual, caminhando ao sol, rumo a casa. Ai, a número onze volta a sair e volta para dentro… só pode estar a gozar comigo!
Deixo de ouvir ruídos, já são 12h40m, os funcionários já abandonaram o barco. Restam os maiores de doze, é uma questão de esperar só mais um pouquinho. Aguenta, não chora, diga “Foda-se!” para si, diga “Foda-se!” pelos outros. Mande-os foder mas não seja tarado. Masque pastilha de boquinha fechada. Não ligue se o observam, não ligue a nada mais. Enfim, limite-se à sua existência. Distancie-se mais um pouco. Seja abstracto e faça cara de parvitico. Tenha ainda mais fome, coma mais um pouco de si. Seja um número doze orgulhoso. Rebole no chão de vinil. Não queira saber do arquitecto, da propaganda médica do ano passado. Não ligue ao que segredam ali ao canto. Diga novamente “Foda-se!”. Esqueça as calças brancas de bombazina, de si, qualquer coisa!

(A porta abriu-se e larguei a escrita, demoro 8 minutos da minha vida no gabinete... a vida é bela!)





Marco Neves – 10-02-06 – Número Doze




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