Antes de irmos até ao texto própriamente dito, quero antes... dar... os... PARABENS ao nosso alentejanito MARCO (Mega pros amigos) á nossa coisa mai lindaaaa... Meu querido amigo, que contes muitos e que sejas muito, mas muito feliz... um jinho para ti, e para a tua maravilhosa mamã!
Agora sim, é um texto grande, mas vale a pena a viagem com o Marco até ao Alentejo
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Expresso Nº 85, 18 horas. Lisboa, rumo a Serpa
Nunca escrevi realmente algo que fosse significativo para o meu próprio bem-estar. Pelo menos que fosse em relação a isso. Não entendo o que se apodera do meu corpo. Sabe-me bem viajar desta forma. Encontro a minha liberdade nestas longas maratonas (cheira-me a frango, alguém come uma sandes no expresso). Hum, onde ia eu? Ah
A2 rumo ao Sul, novamente.
Faço uma breve pausa, o Sol já se encosta nas minhas costas, ainda deu para lhe olhar nos olhos. Alguém grita, uma velha gorda no último banco mais um puto super obeso que não pára de comer. Só espero que não rebente até Serpa. E porque escrevo eu estas m*rdas? Nem interessam ao Diabo ou à avó torta.
Os carros passam, ultrapassam, nem lhes vejo a matricula. Quem lá vai? Quem? Quantos? Nós rolamos pacientemente, ainda me falta bastante até chegar a casa.
À minha frente três miúdas vão conversando, não as oiço. Estou na teia de Ilya, poderosa e de voz quente, arrebate-me por completo nestas viagens. Haja pilha que aguente estes meus momentos de total autismo para com o mundo. Sentado, mascando pastilha, olhando para a paisagem mais que vista. Há sempre algo de novo, nem que seja os meus companheiros de viagem
quem são eles? Pouco importa, neste momento fazem parte de mim, só de mim. Já são 19 horas e nem cheguei a Setúbal.
Uma pausa para mudar de disco, hum Transatlantic All of The Above. Aproveito e vou comer uma sandes. E pronto, já comi e continuo pela onda de Transatlantic enquanto espero na gare de Setúbal, não sei por quem ou pelo quê.
São giras as três miúdas que estão à minha frente, duas no lado direito e outra mesmo à minha frente. Adoro este cheirinho a menininha (era suposto dizer coisas destas?). Porra, sinto-me velho e estou cheio de migalhas.
Morena e de olhos pestanudos, cabelo escadeado, com dois ganchos, engraçadinha. Do lado direito uns olhos azuis puros, sorriso simpático e nariz com personalidade. O nariz à minha frente é correcto, fino e seguro. Esta tem personalidade mesmo. Parece que fala! A outra que vai ao lado, junto do vidro parece-me ser morena, mais não consigo ver. Há mais duas lá para a frente mas pronto. Quando entrei no expresso olharam-me da cabeça aos pés. E esta m*rda de escrever em andamento é uma cegada do caraças! (Nota: ainda na onda de Transatlantic)
Aproveito um semáforo vermelho para escrever mais depressa, mas a porra do tempo que levei a descrever o que se passava, o sinal ficou verde. Pronto, olha outro vermelho mesmo ao pé do Jumbo. Que venha a auto-estrada, apetece-me comer alcatrão até Serpa. Chegar a casa, enviar um fax para Tóquio e ir beber uns copos. Cerveja
cerveja
De que mais vou falar? São 19h32m, coço a sobrancelha direita com o polegar esquerdo, pegando ao mesmo tempo no caderno. Nem o Gervásio conseguia fazer isto, lembram-se dele? Reparo que nem dei pelo semáforo abrir. Agora deu-me sede mas só tenho um Ice Tea, que se lixe, como a outra sandes a seco. Será melhor aguentar? Mas para quê aguentar? Em Grândola compro qualquer coisa. Sendo assim terei menos tempo para fumar. Como acabo de passar as portagens, o expresso deu um solavanco e fiquei com um risco enorme do caderno.
Oh, como é simples fazer um relato destes, basta escrever. Até é vergonhoso estar a poluir o ambiente com isto. Cá continuo a escrever sem me cansar e sem saber realmente porque o faço.
Já dorme a do nariz correcto, daqui consigo ver um pouco do seu rosto. Abandona aos poucos as suas amigas e a sua consciência, enquanto isso acabou Transatlantic My New World. Pura coincidência, a miúda adormece no final da música. A miúda do nariz com personalidade olha vagamente para a paisagem, perdida entre as ervas dos campos e a linha do horizonte.
Não gosto do nariz da que olhou para mim quando entrei (Nota: reparo agora na minha esferográfica de óleo. Está no fim, que cena!). Já dormem as três miúdas, pelo menos descansam neste filme.
Será que não tenho outra caneta aqui na mala? Que facada! Ando com o caderno tempos e tempos sem escrever, agora que me apetece está a caneta quase no fim (Novamente uma Nota: Elas não usam brincos, yeah!).
O Sol encosta-se mesmo por trás de mim, aquece-me lentamente o pescoço. Despede-se de mim aos solavancos no expresso dos tremeliques. Velocidade de cruzeiro, trespassando aos poucos o campo, na língua negra de alcatrão. Deus, leva-me a casa se assim tiver de ser. É nisso que acredito, é isso que me faz viver, eu. Faz-me sorrir, tal como as quase duas horas que ainda tenho de viagem, assim espero.
A terceira ainda não dorme, só dá para lhe ver os olhitos. Vou é guardar tinta da caneta para qualquer eventualidade de maior relevo (E mais uma Nota: ai estas pestanas que vão mesmo à minha frente
ai ai).
O Sol agora beija-me o rosto no lado direito. Tiro os óculos escuros e olho para aquele gigante amarelado.. bolas! Distrai-me e nem dei por acordarem. Meteram-se à conversa novamente. Eu continuo autista na onda de Transatlantic. Passo agora pela grande placa que diz ALENTEJO, assim, graaaaaande! É um pouco como estar em casa, e lá se foi Transatlantic.
Sempre achei piada aos ganchos no cabeço. Mas já me dói o traseiro de estar sentado. A bem dizer desde as 15h30 que não estou nem 5 minutos de pé. A mudança em Lisboa fez-se de forma rápida e directa, sem direito a cigarro. Agora pergunto-me, estava eu a olhar para os ganchos do cabelo e vim parar aqui. Ai nicotina...
Oiço agora Enchant Living in a Movie, vem mesmo a calhar, não é? Parei um pouco para esticar os braços mas acho que vou voltar a uma nova pausa. Já chega de óculos escuros por hoje. Daqui a pouco já vou meter aos que estou condenado. Começa agora e na onda de U2 Discothéque.
Olha
o nariz correcto vai cuscando para o meu caderno pelo meio dos bancos, porquê? Apetece-me um cigarro, nada mais. Apesar de tudo, sinto-me livre dentro destas viagens, isto quando a vontade de urinar ou algo pior não me atraiçoam. Por vezes é bem mais forte que o meu poder de abstracção da realidade. Repenso no que escrevi, abstracção ou assimilação do que me rodeia? Uma realidade assimilativa abstraccionável talvez. Bom, esta agora até me deu para pensar se me haveria de
ou não. Para que conste, acabei por não o fazer (O raio da Nota: passo agora pelos arrozais de Alcácer ao som de U2 - Do You Feel Loved).
O nariz correcto adormece novamente, a sua boca faz um leve beicinho assim dormindo. Melhor que isso, a caneta ainda tem qualquer coisita, é capaz de durar o resto da viagem. Eu que ando sempre com duas canetas na mala, bolas. Podia pedir emprestado ao nariz correcto ou ao nariz com personalidade. Então e porque não à velha gorda e rezingona do último banco? E novamente me questiono, para quê escrever isto tudo?
São agora 20h12m e vou na onda de U2 Mojo. Os minutos passam e eu vou olhando para a estrada. Tu e eu que olhamos para além destas quatro horas. Fazes parte do meu filme, da minha viagem. Bebes água enquanto escrevo, sei que sentes a minha presença, já vou assim desde Lisboa. Sinto-me na obrigação de agradecer a todos os ocupantes deste expresso. São eles que me motivam e estimulam, salvo outro qualquer tipo de estimulo. Sei lá, por vezes acontece-me nas viagens
isto
isto coiso!
Enquanto vou sorrindo maliciosamente e sem saber porquê (Ohoh!), as luzes acendem-se sobre a minha cabeça. São 20h21m e tenho uma fila de luzes azuis de cada lado, eis a minha pista de aterragem ao som de U2 If You Wear That Velvet Dress.
Acabou-se este momento de paz dentro do expresso. A velha e o puto obeso atacam novamente o farnel de forma violenta. Este resmalhar frenético de sacos de plástico sobrepõe-se ao meu autismo para com o mundo. Um cheiro a chouriço invade o habitáculo
deu-me fome. Sorrio e vou continuando a escrever, enquanto isso as miúdas mais à frente passam as mãos pelo cabelo
largam pêlo! O nariz correcto vai levitando nas luzes dos postes (Nota: são 20h26m, saímos da A2). Ela levita na luz meio laranja, o mesmo tom de cor que me passa pelas folhas do caderno.
Enganaram-me, a saída da A2 é já depois de Grândola, afinal este sacana só vai parar em Ferreira do Alentejo. A estrada é má, Stª Margarida do Sado está perto, a luz natural escasseia lá fora. Ligam-se as luzes do lado direito, não incidem sobre mim, muito menos no caderno. Vou esperar mais um pouco ao som de Neurosis A Sun That Never Sets. São 20h33m e mal vejo o que escrevo. Espero, uma luz que se acende mas não me serve de nada. Já escrevo às escuras, tenho de mudar de banco.
Neste momento são 20h38m e já me encontro no outro lado, atrás do nariz com personalidade. O correcto repara em mim, é bom ver-te novamente desperta para a vida. És nova, jovem
não tens maldade no rosto nem olhos que denunciem ódios, talvez por agora. Daqui consigo ver a terceira jovem, tem brincos
oh. (Música às 20h41m, Devin Townsend Bad Devil).
Neste lado vou mais apertado mas não sei porquê. Olha para um banco e para outro mas não distingo qualquer diferença na distância com os da frente, nem as costas dos mesmos. Para ter luz e continuar a escrever tenho de ir com os joelhos cravados no plástico das costas do banco.
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Passamos agora por Figueira dos Cavaleiros às 20h44m. O tal
volta-me a incomodar, eu reprimo-o com um golpe seco. Seco, infalível e impiedoso! As mulheres devem ser infalíveis nesta técnica, ou então sabem como não fazer barulho. São 20h46m e vou ao som de Dysrhythmia Bastard, outra musica que calha bem.
Vejo Ferreira do Alentejo ao longe, já falta pouco para o cigarro, a latinha de Sumol de Ananás e libertar este
maldito. Assim espero
ai! A caneta por vezes falha! A paragem teve direito a dois cigarros e à libertação do maldito. Na verdade foram assim três pouco espaçados. São agora 21h08m e o puto obeso não pára de comer. Pela conversa que ouvi da velha rezingona, presumo que sejam de Serpa (Agora ao som de Dysrhythmia Body Destroyed, Brain Intact)
Esta pausa deixou-me meio em branco, foi um corte. Vou beber o Ice Tea porque a sede aperta e não havia Sumol em Ferreira. Ice Tea de manga bem morno, juntamente com o bafo típico de expresso, maravilha! Poderia eu ser um tipo mais sortudo? São 21h13m e já despachei o sumo de uma só vez.
Chegamos a Beringel ao som de The Missing Boogey Man às 21h16m. Já não sei o que escrever. A música transmite-me pesadelos nocturnos e tenho vontade de espancar na velha e no puto apenas por maldade. Por sorte chega a onde de Collide Euphoria. Lembro-me bem desta música, foi a responsável por me ter inspirado entre a viagem aos montes e vales, algures em Portugal. Voltei-os a redescobrir num abrir e fechar de olhos. Dançando ao ritmo dos pinheiros e eucaliptos. Peguei na minha armadura e senti todos os penedos e cristas de pedra a rasgar-me o coração. Foi renascer em parte, foi mostrar à luz do dia mais um pouco de mim. Saio desta viagem com um horizonte mais abrangente.
É Beja que se vislumbra já aos poucos, faltam poucos quilómetros. Lá vão os meus olhos calcorreando estas planuras, regressando à terra a que pertenço. São 21h23m e pelos meus ouvidos passa The Missing Family Values. Rotunda de Beja, viramos à direita, mais uma volta pela variante, blá blá blá. Outra rotunda, blá blá, McDonalds, blá blá, e lá estará a gare. Entro precisamente em Beja às 21h28m, começa Liquid Tension Biaxident.
Ponho agora a hipótese de o expresso esvaziar por completo. A maioria dos ocupantes, como sempre, fica por aqui. Bingo, beijinhos e abraços a quem sai, eu quero é chegar a casa. Só somos meia dúzia e cheira-me novamente a chouriço. A velha feliz por se fazer sentir presente. Agora desprovido da maioria das minhas personagens nem sei o que faça.
O expresso toma novamente o rumo serpenteando as ruas da cidade. São 21h33m. Às 21h38m chego à última rotunda e saio de Beja. A minha tribo contacta-me para saber por onde ando. Ânimo, já não falta muito. Procuro Serpa na linha do horizonte e não volto a escrever sem ver as luzes. Passo agora pelas Neves, ali está Serpa no horizonte, ao alcance dos meus olhos (suspiro). São 21h42m e vou ouvindo Lambchop Sunrise. Vou-me encostar um pouco no banco, bem preciso.
Vou saboreando a música e a escuridão da planície enquanto regresso, sem muitas pressas. Passo pela placa que distancia o meu refúgio a 14km às 21h46m. Oiço Lambchop Low Ambition. Sentindo no corpo e na pouca distância, o final desta viagem e o começar de outra. Começará assim que esta finalizar. Cada dia é um dia, são vidas que entram em mim, são imagens que me alimentam e me fazem largar todo este mundo. Faço parte dele e ele de mim, estou feliz.
Mergulho em Lambchop There Is Still Time a escassos segundos de passar o Guadiana, entro no tabuleiro da ponte às 21h51m. Lá fora está escuro, mas sei que Serpa brilha para mim. Sinto-me o único ser vivo neste expresso. Não vejo ninguém à minha frente. Vão todos recostados nos bancos.
São 21h53m, despeço-me agora da viagem antes que chegue e não tenha tempo de escrever o final. Foi apenas o relato de uma parte da viagem, esta começou bem de manhã, perdido no mapa. Por onde andei eu e onde já estou, haja maior felicidade que esta que me passa pelo pensamento. Sorrio já com Serpa ao meu lado direito. Passo pelas bombas de gasolina ao som de Lambchop Nothing Adventurous Please.
São agora 21h56m e espero que entre já aqui
virou! Rotunda dos bombeiros às 21h57m e com o castelo iluminado à minha esquerda. Acabo aqui a minha viagem pelas linhas de papel. Obrigado caneta por te teres aguentado. Um sorriso para tudo e todos, para mim principalmente. O ponto final tem de ser aqui. Até
(Última Nota: o expresso pára às 22h01m na gare. Escrevo já em terra firme)
Marco Neves 12-04-04